segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Astronomia.
A influência da astronomia na ciência e na humanidade
Por Enos Picazzio*
Este é o Ano Internacional da Astronomia. Para os brasileiros é um ano especial, pois pela primeira vez sediamos uma Assembleia Geral da União Astronômica Internacional, que ocorreu em agosto passado na cidade do Rio de Janeiro.
Há 400 anos, Galileu Galilei (1564-1642) apontou sua luneta para o céu e nos apresentou um universo que desconhecíamos. Hoje com telescópios modernos de solo e espaciais conseguimos ver muito mais, no entanto o universo continua desconhecido. Ele é muito grande e muito complexo.
O século XX foi fortemente marcado pela física. O século XXI sofrerá forte impacto da astronomia e da biologia. Evoluímos olhando o céu O interesse do ser humano pelos astros perde-se no tempo. Certamente nossos ancestrais mais primitivos usaram a Lua, os planetas e as estrelas como guia e calendário. As mudanças sazonais eram fundamentais para a sobrevivência, por isso as estrelas típicas das estações eram usadas como calendário. Noites de lua cheia propiciavam melhores condições para as atividades noturnas. O céu estrelado era um mapa para caminhadas longas ou mesmo migrações, sobretudo nos mares que são desprovidos de figuras de superfície que sirvam de referência.
Gradativamente, nosso raciocínio tornava-se mais complexo. Assim, passamos a observar mais detalhadamente o movimento dos astros, distinguimos os que pareciam mover-se em conjunto mantendo as mesmas posições relativas (estrelas) daqueles que se moviam independentemente uns dos outros (planetas), percorrendo o céu sempre dentro de uma região limitada (faixa zodiacal). O movimento diurno do Sol e das estrelas marcava o dia. A variação da posição da Lua relativamente ao fundo estrelado era periódica (mês), assim como a mudança de posição das estrelas em um mesmo horário (ano). Durante um ano, o meio ambiente passava por períodos bem distintos (estações sazonais), fundamentais para a sobrevivência. No verão o dia era longo e havia abundância de alimentos. No inverno o dia era mais curto e a sobrevivência era mais complicada, por conta do frio e da escassez de alimentos.
Com o passar do tempo nossa percepção do céu foi se tornando mais complexa. Não bastava conhecer o movimento aparente dos objetos, era preciso entender melhor como isso acontecia. Assim surgia a cosmologia antiga, que evoluiu através da Babilônia e Egito e, posteriormente, pela Grécia antiga e no mundo moderno. Filósofos como Pitágoras e Aristóteles abordaram a cosmologia através de números e geometria, de certa forma como se faz na ciência moderna.
Na sociedade grega a geometria era uma atividade intelectual de destaque, inclusive no pensamento filosófico. Ela representava a combinação perfeita entre lógica e beleza. “Deus é o grande geômetra. Deus geometriza sem cessar. Por toda a parte existe geometria”, dizia Platão (470- 399 a.C.). Platão concebia cinco sólidos primários simétricos, compostos exclusivamente de polígonos regulares: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e o icosaedro. Baseado nesse conceito de perfeição e no modelo heliocêntrico, Johannes Kepler (1571-1630 d.C.) justificava a existência dos seis planetas conhecidos circunscrevendo esses sólidos em esferas. Entre seis esferas, pensava Kepler, só podem caber cinco sólidos: o Sol no centro, seguido da esfera de Mercúrio, cercada por um octaedro. Depois a esfera de Vênus, cercada por um icosaedro. A da Terra, cercada por um dodecaedro. A de Marte, por um tetraedro. A de Júpiter, por um cubo. Por fim, a esfera de Saturno.
Outros filósofos gregos além de Platão descreveram a dinâmica dos corpos celestes através de movimentos uniformes e trajetórias circulares, ambos símbolos da perfeição. Como o universo aparente é geocêntrico, isto é, tudo parece mover-se em torno da Terra, os modelos cosmológicos antigos apresentavam os astros orbitando a Terra em trajetórias circulares, sobre esferas cristalinas concêntricas. Para explicar a inversão de direção do movimento orbital aparente dos planetas (laçadas) e a variação da velocidade orbital e do tamanho aparente, as órbitas circulares se multiplicaram e passaram de concêntricas a excêntricas. Cada planeta movia-se uniformemente ao longo de um círculo (epiciclo), cujo centro movia-se em torno Terra ao longo de um círculo maior (deferente). O centro da deferente estava entre a Terra e o equante (leia resenha, Harmonia do mundo, por Rodrigo Cunha, na ComCiência). Visto do equante, o movimento orbital do epiciclo era constante. Visto da Terra esse movimento era variável.
O conhecimento astronômico babilônico e grego foi compilado e aperfeiçoado por Claudio Ptolomeu (87-151), e publicado em treze livros (Almagesto). O modelo geocêntrico prevaleceu por mais de 16 séculos, até que Nicolau Copérnico (1473-1543) resgatasse e aperfeiçoasse o modelo heliocêntrico de Aristarco de Samos (310-230 a.C). A Terra perdeu o status privilegiado de centro do universo e passou a ser apenas mais um planeta girando em torno do Sol. Retirar o homem desse centro foi um marco histórico significativo.
Com seu trabalho, Tycho Brahe (1546-1601) impôs novo limite na história da astronomia. Ele foi o maior observador até a sua época e produziu o maior acervo de dados. Em 1572, ele descobriu uma estrela nova em Cassiopeia, mais brilhante que Vênus e que podia ser vista à luz do dia. Hoje sabemos que se tratava de uma supernova, a morte catastrófica de uma estrela. Tycho mostrou que essa estrela estava bem além da Lua. Em 1588 ele publicou os resultados de suas observações de um cometa que aparecera no ano anterior, mostrando que esse cometa se movia entre as esferas dos planetas. Essas observações contradiziam a crença aristotélica de que o universo era uma obra perfeita e o céu era imutável.
Usando observações de Tycho Brahe, o matemático Johannes Kepler mostrou que as órbitas dos planetas não eram circulares, mas cônicas de Apolônio, com o Sol em um dos focos. Ele também mostrou que as velocidades dos planetas em suas trajetórias não eram constantes, elas variavam com a distância deles ao Sol. Esse foi mais um duro golpe na estética de perfeição.
Era telescópica
Com suas pesquisas, Galileu abala ainda mais a crença de um universo perfeito e marca uma nova fase da ciência, em especial da física e da astronomia. Instigado pelo movimento dos planetas em órbitas fechadas ele desenvolve trabalhos fundamentais em mecânica, sem os quais Isaac Newton (1643-1727) não teria desenvolvido sua mecânica. Galileu percebeu rapidamente o potencial astronômico de um instrumento óptico que, na época, circulava pela Europa. Era a luneta. Ele construiu várias lunetas, de diferentes tamanhos e potência, e as utilizou como telescópio. Com isso, Galileu iniciou a era telescópica da astronomia, que mudaria completamente nossa visão sobre o universo e seus componentes. Passamos a enxergar melhor e mais longe.
Foi observando o universo que aprendemos que matéria e energia são duas manifestações diferentes da mesma realidade física fundamental e que podem converter-se, uma na outra. Descobrimos como os elementos químicos são forjados, como eles formam moléculas e as condições em que essas moléculas sobrevivem. Aprendemos como as estrelas surgem a partir da matéria que permeia o espaço e como elas evoluem e como manipulam a composição química do universo. Também descobrimos como se formam planetas como a Terra e em que condições eles podem suportar uma biosfera. Descobrimos como a vida tem sido afetada por colisões catastróficas entre corpos celestes e a Terra. Aprendemos a estimar o tempo de vida das estrelas, sabemos como o Sol evoluirá e por quanto tempo as condições ambientais terrestres permitirão nossa existência. Aprendemos, enfim, que embora nossa casa seja a Terra, nossas raízes e nosso destino estão no espaço.
Democratização do conhecimento
A sobrevivência da biosfera é a preocupação mais fundamental da humanidade. Em escala global, a compreensão das razões que implicam em mudanças ambientais e a maneira de se preservar o ambiente demandam conhecimento da interação da Terra-Sol e da ação humana no planeta. Dependemos do Sol para existir, e existiremos enquanto as condições ambientais forem adequadas à vida. Também dependemos da Lua para estabilizar a inclinação do eixo de rotação da Terra, evitando glaciações severas.
O processo através do qual a energia solar se distribui na Terra e suas consequências no clima ainda são mal conhecidos. A climatologia espacial utiliza conhecimentos de geofísica, ciências atmosféricas e astrofísica solar para estudar essa interatividade. É necessário também estudar a influência humana sobre o clima. Para alguns, a presença humana deu início a um novo período geológico: o Antropoceno. Na revista Nature, de 24 de setembro último, foi publicado um trabalho criterioso de vinte e nove cientistas, em que se sugerem limites à ação do homem para evitar alterações ambientais de dimensões catastróficas.
Gerenciar corretamente essa situação complexa é uma tarefa dificílima, cujo sucesso depende mais dos cidadãos do que de seus governantes. Para tanto, é necessário que as pessoas entendam o problema e se conscientizem da sua gravidade. Só há um caminho para isso se concretizar: a educação. Uma das maiores virtudes da educação é que ela nos ensina a pensar. Pensar com disciplina e critério exige treinamento, desde cedo.
Nesse processo, a divulgação desempenha papel fundamental. A tarefa primordial da universidade é produzir conhecimento e democratizá-lo, mas para isso ela precisa de bons pesquisadores, bons professores e, sobretudo, bons alunos. Bons alunos se forjam através de programas educacionais de longo prazo e infraestrutura de qualidade, com escolas, bibliotecas, espaços culturais, como museus, parques temáticos, zoológicos, jardins botânicos, planetários e outros, e em instrumentos de divulgação científica, como jornais, revistas, programas televisivos, internet etc.
Como lembrou Carlos Vogt em sua entrevista publicada na 100a edição desta revista, o papel da divulgação científica não se restringe em difundir a informação, mas também formar no cidadão uma visão da ciência, discutindo o papel e a função da ciência na sociedade. Nesse contexto moderno, o cientista deixa de ser o sábio isolado da sociedade, o cidadão deixa de ser o ignorante isolado da ciência, e o divulgador deixa de ser apenas um elo entre ambos. A responsabilidade de difusão do conhecimento é de todos e se dá em todas as esferas sociais. Para tanto, é necessário despertar no cidadão a visão crítica, para que ele entenda e se conscientize do papel da ciência. Não basta ter acesso à informação, mas é fundamental ter uma visão crítica do processo através do qual se produz conhecimento científico e se difunde esse conhecimento na sociedade. Essa cultura científica pode aperfeiçoar os modos de se fazer e pensar ciência e a própria divulgação. Em essência, isso é saber pensar.
Levar à sociedade o conhecimento produzido pela ciência, além de ser uma obrigação profissional daqueles que produzem o conhecimento, é uma excelente estratégia de apoio a projetos sustentados por verbas públicas. A divulgação educa desde estudantes até os gestores públicos sobre os pontos importantes levantados pelo trabalho científico. Em síntese, é necessário informar para formar.
Entretanto, para informar bem é necessário primeiro formar o informante. Se por um lado, a divulgação feita pelos próprios produtores da ciência pode ser considerada um avanço e um sinal de respeito à sociedade, de outro ela pode carregar alguns vícios, justamente por vir diretamente do cientista. Portanto, cabe a este preparar-se adequadamente para transmitir à sociedade seus conhecimentos usando uma linguagem mais apropriada ao público alvo.
No que tange ao jornalismo científico, embora se reconheça um crescimento expressivo nessa área e a existência de alguns centros de excelência na divulgação científica brasileira, na opinião de Wilson da Costa Bueno (“O que está faltando ao jornalismo científico brasileiro?”, site da Associação Brasileira de Jornalismo Científico) “o panorama continua pouco favorável ao jornalismo científico nos ‘jornalões', no rádio e na televisão”. Ainda segundo ele, o problema maior está na prática de um jornalismo científico que é pouco investigativo e vive a reboque de fatos sensacionais, que não atende à sua função pedagógica e que não está comprometido com o processo de democratização do conhecimento. A falta de uma “cultura de comunicação” nas nossas principais universidades, empresas e institutos de pesquisa; e a falta de consciência dos editores e empresários da comunicação, que buscam pautas óbvias, “oficialescas”, contribuem para isso.
Essa situação pode ficar ainda mais complexa quando se procura transmitir conceitos a um público com diferentes níveis de escolaridade. E esse é o desafio da divulgação científica: expor o conhecimento científico em linguagem popular. Isso não é uma tarefa simples. Jean Le Ronde D'Alembert (1717-1783), físico, filósofo e matemático, dizia: “nunca seria demais simplificar e, por assim dizer, popularizar a linguagem de cada ciência, o que seria não só um meio de facilitar seu estudo, como também retirar do povo um pretexto para desacreditá-la”.
Imprecisão na informação amplia o desconhecimento
Uma busca, ainda que rápida, em veículos de comunicação impresso e eletrônico, incluindo livros e sítios didáticos, revela inúmeros exemplos de escolhas equivocadas de palavras e expressões para substituir termos técnicos, que nem sempre são inteligíveis. Talvez o caso mais clássico seja Lua e lua. Galileu parece ter usado o termo lua para referir-se aos quatro satélites que descobriu em torno de Júpiter. Em tese, sabemos quando se usa uma ou outra palavra, mas isso tem causado muita confusão em todos os meios de comunicação. Esse equívoco é cometido mesmo no meio universitário. O que será que se passa pela cabeça de uma criança ou de uma pessoa pouco esclarecida quando ouvem uma frase do tipo “A lua da Terra é a Lua.”? O que existe de impróprio na palavra satélite para ser trocada por lua ? Essa palavra é confusa, aquela é precisa. Ninguém diz que o satélite Goes é uma lua meteorológica, nem que o GPS é um sistema de posicionamento baseado em 28 luas.
Outro termo muito usado em linguagem metafórica é sistema(s) solar(es) no lugar de sistema(s) planetário(s). O primeiro termo é específico e o segundo é genérico, logo essa linguagem metafórica procura generalizar o específico. “A Terra é um planeta do sistema solar do Sol”. Pura redundância. E se alguém dissesse que os continentes são banhados pelos atlânticos Índico, Ártico, Antártico, Pacífico e Atlântico? Mas o problema pode ser ainda mais sério: ao se dizer que há outros sistemas solares além do nosso, pode-se passar a ideia de que esses sistemas planetários sejam iguais ou parecidos com o solar. Não são.
Há expressões que beiram o ridículo, como, por exemplo, “estrelas que gaguejam”. Aqui, o termo gaguejar foi usado para se referir a sinais em ondas de rádio, com duração de milissegundos, que se repetem imprevisivelmente em intervalos entre minutos e horas. O uso dessa expressão ajudou o leitor a entender o fenômeno físico envolvido nesse comportamento?
Em textos de astronomia há muitos outros exemplos de termos inadequados, como, terras (exoplanetas rochosos), superterras (planetas rochosos maiores que a Terra), júpiteres (exoplanetas gasosos), júpiteres-quentes (exoplanetas gasosos muito próximos de suas estrelas), vias-lácteas (galáxias) etc. Infelizmente, parte deles foi criada pelos próprios astrônomos. O que se questiona não é o uso de metáfora na linguagem simplificada, mas os malefícios que elas causam quando usadas incorretamente. Imprecisão, analogias abusivas e desconsideração com conceitos básicos nas diversas áreas da ciência, em boa parte dos casos, ampliam o desconhecimento do leitor em vez de sensibilizá-lo para a perspectiva do conhecimento.
Há duas qualidades que tornam a astronomia uma ciência especial: sua interação com as demais ciências e sua sedução. Paul Caro, químico francês e competente divulgador, diz que “uma das áreas mais fáceis de divulgar é a astrofísica, porque tem belas imagens do céu e a origem do universo é muito interessante. A história da criação é uma história clássica de qualquer religião ou contos de fadas. Por exemplo, a criação das estrelas, num processo que envolve química nuclear, é uma história atraente e as pessoas aprendem-na. Se fosse uma palestra sobre a química nuclear, não ouviriam”. Por isso mesmo, a astronomia é muito utilizada por todos os meios de comunicação. Devemos aproveitar essa característica da astronomia para educar, mas essa iniciativa pode não cumprir seu papel adequadamente se as imprecisões persistirem.
* Enos Picazzio é professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e desenvolve pesquisa em astrofísica do sistema solar, com ênfase em cometas e Sol.
Fonte: (Envolverde/ComCiência)
Base de dados: Envolverde
© Copyleft - É livre a reprodução exclusivamente para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Por Enos Picazzio*
Este é o Ano Internacional da Astronomia. Para os brasileiros é um ano especial, pois pela primeira vez sediamos uma Assembleia Geral da União Astronômica Internacional, que ocorreu em agosto passado na cidade do Rio de Janeiro.
Há 400 anos, Galileu Galilei (1564-1642) apontou sua luneta para o céu e nos apresentou um universo que desconhecíamos. Hoje com telescópios modernos de solo e espaciais conseguimos ver muito mais, no entanto o universo continua desconhecido. Ele é muito grande e muito complexo.
O século XX foi fortemente marcado pela física. O século XXI sofrerá forte impacto da astronomia e da biologia. Evoluímos olhando o céu O interesse do ser humano pelos astros perde-se no tempo. Certamente nossos ancestrais mais primitivos usaram a Lua, os planetas e as estrelas como guia e calendário. As mudanças sazonais eram fundamentais para a sobrevivência, por isso as estrelas típicas das estações eram usadas como calendário. Noites de lua cheia propiciavam melhores condições para as atividades noturnas. O céu estrelado era um mapa para caminhadas longas ou mesmo migrações, sobretudo nos mares que são desprovidos de figuras de superfície que sirvam de referência.
Gradativamente, nosso raciocínio tornava-se mais complexo. Assim, passamos a observar mais detalhadamente o movimento dos astros, distinguimos os que pareciam mover-se em conjunto mantendo as mesmas posições relativas (estrelas) daqueles que se moviam independentemente uns dos outros (planetas), percorrendo o céu sempre dentro de uma região limitada (faixa zodiacal). O movimento diurno do Sol e das estrelas marcava o dia. A variação da posição da Lua relativamente ao fundo estrelado era periódica (mês), assim como a mudança de posição das estrelas em um mesmo horário (ano). Durante um ano, o meio ambiente passava por períodos bem distintos (estações sazonais), fundamentais para a sobrevivência. No verão o dia era longo e havia abundância de alimentos. No inverno o dia era mais curto e a sobrevivência era mais complicada, por conta do frio e da escassez de alimentos.
Com o passar do tempo nossa percepção do céu foi se tornando mais complexa. Não bastava conhecer o movimento aparente dos objetos, era preciso entender melhor como isso acontecia. Assim surgia a cosmologia antiga, que evoluiu através da Babilônia e Egito e, posteriormente, pela Grécia antiga e no mundo moderno. Filósofos como Pitágoras e Aristóteles abordaram a cosmologia através de números e geometria, de certa forma como se faz na ciência moderna.
Na sociedade grega a geometria era uma atividade intelectual de destaque, inclusive no pensamento filosófico. Ela representava a combinação perfeita entre lógica e beleza. “Deus é o grande geômetra. Deus geometriza sem cessar. Por toda a parte existe geometria”, dizia Platão (470- 399 a.C.). Platão concebia cinco sólidos primários simétricos, compostos exclusivamente de polígonos regulares: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e o icosaedro. Baseado nesse conceito de perfeição e no modelo heliocêntrico, Johannes Kepler (1571-1630 d.C.) justificava a existência dos seis planetas conhecidos circunscrevendo esses sólidos em esferas. Entre seis esferas, pensava Kepler, só podem caber cinco sólidos: o Sol no centro, seguido da esfera de Mercúrio, cercada por um octaedro. Depois a esfera de Vênus, cercada por um icosaedro. A da Terra, cercada por um dodecaedro. A de Marte, por um tetraedro. A de Júpiter, por um cubo. Por fim, a esfera de Saturno.
Outros filósofos gregos além de Platão descreveram a dinâmica dos corpos celestes através de movimentos uniformes e trajetórias circulares, ambos símbolos da perfeição. Como o universo aparente é geocêntrico, isto é, tudo parece mover-se em torno da Terra, os modelos cosmológicos antigos apresentavam os astros orbitando a Terra em trajetórias circulares, sobre esferas cristalinas concêntricas. Para explicar a inversão de direção do movimento orbital aparente dos planetas (laçadas) e a variação da velocidade orbital e do tamanho aparente, as órbitas circulares se multiplicaram e passaram de concêntricas a excêntricas. Cada planeta movia-se uniformemente ao longo de um círculo (epiciclo), cujo centro movia-se em torno Terra ao longo de um círculo maior (deferente). O centro da deferente estava entre a Terra e o equante (leia resenha, Harmonia do mundo, por Rodrigo Cunha, na ComCiência). Visto do equante, o movimento orbital do epiciclo era constante. Visto da Terra esse movimento era variável.
O conhecimento astronômico babilônico e grego foi compilado e aperfeiçoado por Claudio Ptolomeu (87-151), e publicado em treze livros (Almagesto). O modelo geocêntrico prevaleceu por mais de 16 séculos, até que Nicolau Copérnico (1473-1543) resgatasse e aperfeiçoasse o modelo heliocêntrico de Aristarco de Samos (310-230 a.C). A Terra perdeu o status privilegiado de centro do universo e passou a ser apenas mais um planeta girando em torno do Sol. Retirar o homem desse centro foi um marco histórico significativo.
Com seu trabalho, Tycho Brahe (1546-1601) impôs novo limite na história da astronomia. Ele foi o maior observador até a sua época e produziu o maior acervo de dados. Em 1572, ele descobriu uma estrela nova em Cassiopeia, mais brilhante que Vênus e que podia ser vista à luz do dia. Hoje sabemos que se tratava de uma supernova, a morte catastrófica de uma estrela. Tycho mostrou que essa estrela estava bem além da Lua. Em 1588 ele publicou os resultados de suas observações de um cometa que aparecera no ano anterior, mostrando que esse cometa se movia entre as esferas dos planetas. Essas observações contradiziam a crença aristotélica de que o universo era uma obra perfeita e o céu era imutável.
Usando observações de Tycho Brahe, o matemático Johannes Kepler mostrou que as órbitas dos planetas não eram circulares, mas cônicas de Apolônio, com o Sol em um dos focos. Ele também mostrou que as velocidades dos planetas em suas trajetórias não eram constantes, elas variavam com a distância deles ao Sol. Esse foi mais um duro golpe na estética de perfeição.
Era telescópica
Com suas pesquisas, Galileu abala ainda mais a crença de um universo perfeito e marca uma nova fase da ciência, em especial da física e da astronomia. Instigado pelo movimento dos planetas em órbitas fechadas ele desenvolve trabalhos fundamentais em mecânica, sem os quais Isaac Newton (1643-1727) não teria desenvolvido sua mecânica. Galileu percebeu rapidamente o potencial astronômico de um instrumento óptico que, na época, circulava pela Europa. Era a luneta. Ele construiu várias lunetas, de diferentes tamanhos e potência, e as utilizou como telescópio. Com isso, Galileu iniciou a era telescópica da astronomia, que mudaria completamente nossa visão sobre o universo e seus componentes. Passamos a enxergar melhor e mais longe.
Foi observando o universo que aprendemos que matéria e energia são duas manifestações diferentes da mesma realidade física fundamental e que podem converter-se, uma na outra. Descobrimos como os elementos químicos são forjados, como eles formam moléculas e as condições em que essas moléculas sobrevivem. Aprendemos como as estrelas surgem a partir da matéria que permeia o espaço e como elas evoluem e como manipulam a composição química do universo. Também descobrimos como se formam planetas como a Terra e em que condições eles podem suportar uma biosfera. Descobrimos como a vida tem sido afetada por colisões catastróficas entre corpos celestes e a Terra. Aprendemos a estimar o tempo de vida das estrelas, sabemos como o Sol evoluirá e por quanto tempo as condições ambientais terrestres permitirão nossa existência. Aprendemos, enfim, que embora nossa casa seja a Terra, nossas raízes e nosso destino estão no espaço.
Democratização do conhecimento
A sobrevivência da biosfera é a preocupação mais fundamental da humanidade. Em escala global, a compreensão das razões que implicam em mudanças ambientais e a maneira de se preservar o ambiente demandam conhecimento da interação da Terra-Sol e da ação humana no planeta. Dependemos do Sol para existir, e existiremos enquanto as condições ambientais forem adequadas à vida. Também dependemos da Lua para estabilizar a inclinação do eixo de rotação da Terra, evitando glaciações severas.
O processo através do qual a energia solar se distribui na Terra e suas consequências no clima ainda são mal conhecidos. A climatologia espacial utiliza conhecimentos de geofísica, ciências atmosféricas e astrofísica solar para estudar essa interatividade. É necessário também estudar a influência humana sobre o clima. Para alguns, a presença humana deu início a um novo período geológico: o Antropoceno. Na revista Nature, de 24 de setembro último, foi publicado um trabalho criterioso de vinte e nove cientistas, em que se sugerem limites à ação do homem para evitar alterações ambientais de dimensões catastróficas.
Gerenciar corretamente essa situação complexa é uma tarefa dificílima, cujo sucesso depende mais dos cidadãos do que de seus governantes. Para tanto, é necessário que as pessoas entendam o problema e se conscientizem da sua gravidade. Só há um caminho para isso se concretizar: a educação. Uma das maiores virtudes da educação é que ela nos ensina a pensar. Pensar com disciplina e critério exige treinamento, desde cedo.
Nesse processo, a divulgação desempenha papel fundamental. A tarefa primordial da universidade é produzir conhecimento e democratizá-lo, mas para isso ela precisa de bons pesquisadores, bons professores e, sobretudo, bons alunos. Bons alunos se forjam através de programas educacionais de longo prazo e infraestrutura de qualidade, com escolas, bibliotecas, espaços culturais, como museus, parques temáticos, zoológicos, jardins botânicos, planetários e outros, e em instrumentos de divulgação científica, como jornais, revistas, programas televisivos, internet etc.
Como lembrou Carlos Vogt em sua entrevista publicada na 100a edição desta revista, o papel da divulgação científica não se restringe em difundir a informação, mas também formar no cidadão uma visão da ciência, discutindo o papel e a função da ciência na sociedade. Nesse contexto moderno, o cientista deixa de ser o sábio isolado da sociedade, o cidadão deixa de ser o ignorante isolado da ciência, e o divulgador deixa de ser apenas um elo entre ambos. A responsabilidade de difusão do conhecimento é de todos e se dá em todas as esferas sociais. Para tanto, é necessário despertar no cidadão a visão crítica, para que ele entenda e se conscientize do papel da ciência. Não basta ter acesso à informação, mas é fundamental ter uma visão crítica do processo através do qual se produz conhecimento científico e se difunde esse conhecimento na sociedade. Essa cultura científica pode aperfeiçoar os modos de se fazer e pensar ciência e a própria divulgação. Em essência, isso é saber pensar.
Levar à sociedade o conhecimento produzido pela ciência, além de ser uma obrigação profissional daqueles que produzem o conhecimento, é uma excelente estratégia de apoio a projetos sustentados por verbas públicas. A divulgação educa desde estudantes até os gestores públicos sobre os pontos importantes levantados pelo trabalho científico. Em síntese, é necessário informar para formar.
Entretanto, para informar bem é necessário primeiro formar o informante. Se por um lado, a divulgação feita pelos próprios produtores da ciência pode ser considerada um avanço e um sinal de respeito à sociedade, de outro ela pode carregar alguns vícios, justamente por vir diretamente do cientista. Portanto, cabe a este preparar-se adequadamente para transmitir à sociedade seus conhecimentos usando uma linguagem mais apropriada ao público alvo.
No que tange ao jornalismo científico, embora se reconheça um crescimento expressivo nessa área e a existência de alguns centros de excelência na divulgação científica brasileira, na opinião de Wilson da Costa Bueno (“O que está faltando ao jornalismo científico brasileiro?”, site da Associação Brasileira de Jornalismo Científico) “o panorama continua pouco favorável ao jornalismo científico nos ‘jornalões', no rádio e na televisão”. Ainda segundo ele, o problema maior está na prática de um jornalismo científico que é pouco investigativo e vive a reboque de fatos sensacionais, que não atende à sua função pedagógica e que não está comprometido com o processo de democratização do conhecimento. A falta de uma “cultura de comunicação” nas nossas principais universidades, empresas e institutos de pesquisa; e a falta de consciência dos editores e empresários da comunicação, que buscam pautas óbvias, “oficialescas”, contribuem para isso.
Essa situação pode ficar ainda mais complexa quando se procura transmitir conceitos a um público com diferentes níveis de escolaridade. E esse é o desafio da divulgação científica: expor o conhecimento científico em linguagem popular. Isso não é uma tarefa simples. Jean Le Ronde D'Alembert (1717-1783), físico, filósofo e matemático, dizia: “nunca seria demais simplificar e, por assim dizer, popularizar a linguagem de cada ciência, o que seria não só um meio de facilitar seu estudo, como também retirar do povo um pretexto para desacreditá-la”.
Imprecisão na informação amplia o desconhecimento
Uma busca, ainda que rápida, em veículos de comunicação impresso e eletrônico, incluindo livros e sítios didáticos, revela inúmeros exemplos de escolhas equivocadas de palavras e expressões para substituir termos técnicos, que nem sempre são inteligíveis. Talvez o caso mais clássico seja Lua e lua. Galileu parece ter usado o termo lua para referir-se aos quatro satélites que descobriu em torno de Júpiter. Em tese, sabemos quando se usa uma ou outra palavra, mas isso tem causado muita confusão em todos os meios de comunicação. Esse equívoco é cometido mesmo no meio universitário. O que será que se passa pela cabeça de uma criança ou de uma pessoa pouco esclarecida quando ouvem uma frase do tipo “A lua da Terra é a Lua.”? O que existe de impróprio na palavra satélite para ser trocada por lua ? Essa palavra é confusa, aquela é precisa. Ninguém diz que o satélite Goes é uma lua meteorológica, nem que o GPS é um sistema de posicionamento baseado em 28 luas.
Outro termo muito usado em linguagem metafórica é sistema(s) solar(es) no lugar de sistema(s) planetário(s). O primeiro termo é específico e o segundo é genérico, logo essa linguagem metafórica procura generalizar o específico. “A Terra é um planeta do sistema solar do Sol”. Pura redundância. E se alguém dissesse que os continentes são banhados pelos atlânticos Índico, Ártico, Antártico, Pacífico e Atlântico? Mas o problema pode ser ainda mais sério: ao se dizer que há outros sistemas solares além do nosso, pode-se passar a ideia de que esses sistemas planetários sejam iguais ou parecidos com o solar. Não são.
Há expressões que beiram o ridículo, como, por exemplo, “estrelas que gaguejam”. Aqui, o termo gaguejar foi usado para se referir a sinais em ondas de rádio, com duração de milissegundos, que se repetem imprevisivelmente em intervalos entre minutos e horas. O uso dessa expressão ajudou o leitor a entender o fenômeno físico envolvido nesse comportamento?
Em textos de astronomia há muitos outros exemplos de termos inadequados, como, terras (exoplanetas rochosos), superterras (planetas rochosos maiores que a Terra), júpiteres (exoplanetas gasosos), júpiteres-quentes (exoplanetas gasosos muito próximos de suas estrelas), vias-lácteas (galáxias) etc. Infelizmente, parte deles foi criada pelos próprios astrônomos. O que se questiona não é o uso de metáfora na linguagem simplificada, mas os malefícios que elas causam quando usadas incorretamente. Imprecisão, analogias abusivas e desconsideração com conceitos básicos nas diversas áreas da ciência, em boa parte dos casos, ampliam o desconhecimento do leitor em vez de sensibilizá-lo para a perspectiva do conhecimento.
Há duas qualidades que tornam a astronomia uma ciência especial: sua interação com as demais ciências e sua sedução. Paul Caro, químico francês e competente divulgador, diz que “uma das áreas mais fáceis de divulgar é a astrofísica, porque tem belas imagens do céu e a origem do universo é muito interessante. A história da criação é uma história clássica de qualquer religião ou contos de fadas. Por exemplo, a criação das estrelas, num processo que envolve química nuclear, é uma história atraente e as pessoas aprendem-na. Se fosse uma palestra sobre a química nuclear, não ouviriam”. Por isso mesmo, a astronomia é muito utilizada por todos os meios de comunicação. Devemos aproveitar essa característica da astronomia para educar, mas essa iniciativa pode não cumprir seu papel adequadamente se as imprecisões persistirem.
* Enos Picazzio é professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e desenvolve pesquisa em astrofísica do sistema solar, com ênfase em cometas e Sol.
Fonte: (Envolverde/ComCiência)
Base de dados: Envolverde
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