Eu tive um cão. Chamava-se Veludo,
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos d’um camarada,
Na hora da partida. O cão gemendo,
Não me queria acompanhar por nada,
Enfim – mau grado seu – o vim trazendo.
Veludo a custo habituou-se à vida,
Que o destino de novo lhe escolhera,
Sua rugosa pálpebra sentida,
Chorava o antigo dono que perdera.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia,
Vi-me livre daquele companheiro,
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.
E respirei! “Graças a Deus! Já posso”
Dizia eu viver neste bom mundo,
Sem ter que dar diariamente um osso,
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda casa satisfeito,
E – de cansado – foi rolar dormindo,
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável,
Suportar esse hóspede inoportuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo,
Para livrar-me desse cão leproso,
Havia um meio só: era matá-lo.
Zunia a asa funebre dos ventos,
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Veludo à proa olhava-me choroso
Como um cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei a terra – entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão, profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei – oh, grande dor! – haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha –o unido.
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devorava tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah ! se Veludo
Duas vidas tivera – duas vidas
Eu arrancava àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri – abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés -, e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? – Ajoelhado
Junto do cão – estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o ! Estava morto!
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