Essa era a vida que levava os heróis motoristas das jardineiras, as antecessoras dos modernos ônibus. Asfalto? Só na via Dutra. O resto era apenas chão vermelho!
A jardineira típica era, geralmente, um veículo “chevrolet’’ que possuía, em sua traseira, na parte externa, uma escada de ferro fixa. Essa escada levava ao alto do veículo. Por ela subiam-se as malas, pacotes, varas com frangos, gaiolas, bico de arado, sacos postais, colchões, sacaria com café, arroz, feijão, milho, caixotes de mandiocas, inhames, flores, “banda” de porco etc, etc, etc. E, às vezes, alguns passageiros lá se aboletavam por falta de lugar nas poltronas. Muitos foram os motoristas que possuíram jardineiras. Entre eles podemos citar Vicente de Paula Miranda, os irmãos Luís e Andrielli Andriatta, Pedro Silveira, Nassif e Toninho Cury, Getúlio Vilela, este ainda em atividade. Mas queremos hoje prestar nossa homenagem a um em especial:
Nasceu ele a 18 de setembro de 1906, na Campanha. Casou-se em 24 de dezembro de 1935 com dona Luiza Maria Mattos. Vieram os filhos: Maria Aparecida, Egynésia, Maria de Lourdes e João Paulo. Ainda moço trabalhou na chácara do coronel Alfredo Leite. Depois, na fazenda do senhor José Abílio Mendes, onde aprendeu a dirigir veículos. Com as economias que conseguiu, abriu uma casa de comércio na parte inferior do sobrado onde morava, ali na subida do Morro dos Pintos. Não demorou muito associou-se a Afonso Machado na compra de uma jardineira. Afonso atuava como motorista e João Maurício na difícil tarefa de cobrador. Com o tempo comprou a parte de Afonso, ficando proprietário único da jardineira e da linha Cambuquira-Campanha-São Gonçalo.
As jardineiras, como os atuais ônibus, tinham acessórios. Porém, muito diferentes dos de hoje. Naquele tempo era indispensável o “capa-corrente”, espécie de capa feita de correntes de ferro com que se envolviam os pneus para evitar a derrapagem. Também não se viajava sem enxada, picareta e pá. Caiu no atoleiro? Motorista e cobrador e mais alguns passageiros iam tratar de safar o veículo. Uns catavam pedras, outros galhos de árvores. Daí alguns minutos, depois de enxadadas e "picaretadas" lá estava ela livre, pronta para cair em outro buraco mais adiante!
A chegada da jardineira assemelhava-se à confusão de um mercado ou feira livre. Todo mundo querendo do João Maurício respostas para os recados e encomendas enviados de manhã. E o João Maurício, sem nada anotar, nada esquecia!
- Seu João “ Murício,” o que o homem mandou dizê ?
- Sô João, o senhor comprou a minha passagem para o Rio?
- Sô João, achou o remédio?
E seguia-se uma enxurrada de perguntas. Para todas o João tinha respostas e também já ia guardando os bilhetes e recomendações para a próxima parada. Tudo num lapso de dez minutos! Enquanto isto, o ajudante já estava descendo os balaios, malas e bugigangas. Acabou? Então está na hora de subir as novas encomendas.
Histórias existem, muitas. A jardineira ia tranqüila estrada afora. Em dado momento, sô João pára. Todo mundo estranha.
- Que houve, sô João “ Murício”? A bicha enguiçou?
- Não. Hoje é dia do compadre Zeferino ir fazê compra em São Gonçalo. Tá atrasado. Vamos esperar um pouco.
Não demora muito e lá no alto do pasto aparece o compadre em cima de um cavalo, trazendo na garupa um rapazote. Chega perto, sofreia o animal, apeia e passa as rédeas ao garoto. Entra esbaforido e diz para toda a jardineira:
- Oceis me adiscurpi o atraso.
E os passageiros como que ensaiados, respondem:
- Não há de que. Isto acontece. Vamos com Deus.
E lá ia a jardineira sacolejando e todo mundo feliz.
Outra história. Esta da jardineira do Getúlio Vilela:
Antigamente a gasolina era inodora. Um dia o governo determinou, através de lei, a colocação de uma substância que desse cheiro ao combustível a fim de evitar os constantes acidentes. Os primeiros aditivos eram insuportáveis devido ao forte odor. Lá no Posto do Haroldo Roquim, no Lago, seu João começa abastecer o veículo. Jardineira apinhada de gente. O novo cheiro se espalha e chega até às narinas do seu Chico, assentado lá na cozinha. Cozinha se chamava o último banco da jardineira, lugar que ninguém gostava de viajar, pois além de sacolejar muito era onde a poeira mais gostava de ficar. Sô Chico logo dá o estrilo e grita:
- Nossa, que fedentina. Que é isto, João “Murício”?
- É o governo sô Chico. Agora ele mandou pôr este cheiro na gasolina.
- Mas, tá doido! Que fedor horrível. Hum... num tô agüentando. Pior que carniça.
- Mas é o governo. Eu não posso fazer nada.
- Eu sei, João. Mas isto mata um. Gambá do puro. Olha aqui: mili veiz um peido bem dado!
Ao João Maurício, falecido a 13 de março de 1974, a nossa homenagem póstuma. Ele e os outros, através do trabalho honesto, foram responsáveis, em grande parte, pelo progresso de nossa cidade. A vida deles não foi fácil. Mas o fato de ter dirigido jardineiras, veículos tão cheios de romantismo, que nos traz saudades do tempo da tranqüilidade, da amizade sem interesse, das dificuldades em que todos se ajudavam, nos dá a certeza de que Deus já arranjou um lugarzinho especial para cada um deles. Sem lama, sem buracos, sem cozinha, sem poeira, sem pás e picaretas. Pois eles já tiveram todos os pecados remidos... nas nossas estradas!
Crônica publicada na Folha Campanhense e, posteriormente, no livro “As velhas e novas da Campanha de sempre”, de autoria de Leonardo Lima, Gráfica Véritas, Ed. 2005.
Um comentário:
estou amando este blog. na primeira foto desta postagem, tenho quase certeza que a garota em primeiro pano é minha mãe, Marina. e o cara atrás dela é meu tio Toninho Mandureba. vou confirmar com eles.
parabéns pelo blog.
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