quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O vôo do grupo do Seu Zé
Depois de dois dias por Brasília, em reuniões em ministérios, termino com um dia no Senado e na Câmara dos Deputados. Cansado, vou para o aeroporto as 16:00 hs com a esperança de que haveria um voo mais cedo... Mas, não. Sento-me e fico lendo as notas das reuniões até que as 19:00 hs somos chamados para meu voo.
O funcionário da empresa aérea chama e todos se apressam a correr para o portão de embarque. Ouvi um garoto gordo dizer: “Vamos seu Zé, vamos Dna. Maria!”. E foi aquele corre-corre. Seu Zé (típico nordestino da roça, chapéu de feltro surrado na cabeça), Dna Maria (ambos com aparência de estarem acima de 60 anos), Neguinha (assim ela foi chamada), Zuzú, o garoto gordo, seis (eu contei) outras senhoras idosas e quatro crianças de colo se ajuntam no portão de embarque. O funcionário pega alguns passes de embarque e aponta o ônibus. Depois ele vê essa senhora parada mais lá para trás, encolhida. É a dona Maria que se desgarrou do resto...
- Cartão de Embarque, por favor...
- Ahn? Que é isso?
- Aquele papel que lhe deram para a senhora entrar no avião.
- Sei lá. “Tinha” um papelzinho todo escrito, mas eu achei que não era nada (importante), amassei e joguei fora!
- Ah...Tá bão vá...A senhora tá com eles, né? (Apontando para o resto do grupo já no ônibus).
- É...Eu tô com o Zé...(e aponta).
- Mas o cartão...Ah...Tá bão, pode ir, vai!...
Ao chegar na aeronave, o funcionário vendo que “aquilo ali ia dar confusão”, pois todo mundo sentou onde queria, sem olhar se o assento era seu mesmo, grita: “Podem pegar o assento que quiserem. O assento é livre!” Já pensou conferir o número de assento cada um num vôo já atrasado?...
Eu protesto, pois estava morto de cansado e havia escolhido uma janela...Queria meu assento. E me deram, mas não dormi, pois tinha que pegar minha laptop e escrever o que via e ouvia. Na frente da Zulmira (sei o nome porque ela ligou para São Paulo para avisar os parentes que ela estava voltando a viver em Santo Amaro, na Zona Sul... Pela terceira vez depois de ter voltado para o Ceará)...Ela diz que tinha que desligar rápido porque “o avião pode até cair se a gente usa o celular dentro dele!” O solicito conterrâneo ao lado dela, de cabelos grisalhos e na casa dos 40 anos, ouve a conversa da moça e já emenda um papo, caprichando no português, perguntando se ela conhece uma determinada vila na zona sul...Ele conta que tem uma boa casa lá, tem um bom emprego, vive sozinho... Humm..., Isso tá cheirando a paquera. A moça vai em frente e começa a contar que é solteira e por aí vai, trocando números de telefone...
Ela até diz que gostou muito de Brasília, que passou em frente do Palácio do Lula, e emenda: “Até me imaginei mulher do Lula vivendo lá...” Opa! O “filho do Brasil” conquistando mais corações nordestinos...
O avião vai levantar voo e aeromoça faz aquela demonstração de segurança que quase ninguém presta atenção. Depois passa a conferir se todo mundo está com o cinto afivelado...Dna. Maria, na fileira ao lado não sabe o que fazer com aquele cinto...
- Senhora, por favor, a senhora tem que colocar o cinto nessa criança e na senhora também!
- Tá bom, eu coloco ele no meu colo e amarro bem com isso aqui...(E começa a puxar o cinto para amarrar)...
- Senhora, (já impaciente, pois o avião começa a se mover)...Não é assim. A senhora pode colocar ele no colo, mas não pode amarrar. É só enfiar essa coisa aí (apontando para a lingueta do cinto), na outra...Seu Zé, cabra macho mais experiente, já havia sacado o lance e fez como o passageiro do lado tinha feito, afivelando o cinto. Pela cara da aeromoça havia mais gente sem cinto da forma apropriada ali, mas...O avião precisava partir...Iria demorar explicar tudo novamente.
O piloto apaga as luzes para a decolagem. Zulmira comenta: “Ué... Porque apagou tudo?” O avião demora uma eternidade taxiando de uma pista para outra e a Zulmira comenta: “Se é para ir pelo chão, teria ido de ônibus! Voar dá um medo danado...” Dona Maria está quieta, segurando bem forte o neto contra o peito. O avião levanta voo e olho para ela. Está de olhos fechados...Deve estar na quarta ou quinta Ave-Maria...
Aí uma dúvida me assalta. Seriam aquelas senhoras idosas mães de “filhos do nordeste” que haviam migrado para São Paulo e agora estavam viajando pela primeira vez de avião para vê-los nas festas de fim-de-ano? Seria o seu Zé uma espécie de “coiote” nordestino, a semelhança daqueles facilitadores de imigrantes que invadem a terra rica e prometida dos EUA, passando por rios, cercas e desertos? Seriam elas avós que vão ver netos que, nascidos no sul-maravilha, agora fazem parte desta enorme babel em que se transformou São Paulo alagada pelas últimas chuvas?...
O tempo na chegada a São Paulo está...Bem, aquele tempo típico de São Paulo: nublado, chovendo, contrastando com o sol nordestino. A comissária diz que o piloto tem que apagar as luzes para o pouso. As luzes se apagam, e o avião é iluminado de vez em quando por relâmpagos naquela escuridão lá fora. Ah...Mas esse povo já aprendeu alguma coisa. Eles viram o Zuzú (o garoto gordo) se levantar e acender sua luz individual de leitura. É parecido no ônibus, né? Um por um, eles levantam a mão e fazem o mesmo. Até a Dna. Maria fica tentando todos os botões e acaba apertando o botão de chamar a aeromoça, que vem até ali, olha feio e desliga. Se vamos morrer que não seja no escuro!
O voo toca a pista e tem gente que já se levanta, até com criança no colo...A aeromoça se apressa a falar alto para que ninguém se levante, e espere “o avião parar completamente e apagar aquela luzinha do cinto de segurança...” Quando a luz do cinto se apaga, todos se precipitam porta afora, em direção ao ônibus que nos levará ao terminal no meio da chuva. Ouço ameaças de uma mãe para uma criança que chora, talvez por causa do desconforto nos ouvidos, causado pela descompressão: “Cala a boca, Heloisa, senão te enfio a mão aqui mesmo! Você fica me fazendo passar vergonha! E não vou dar a chupeta, não! A vóinha já falou que entorta os dentes!”
As malas demoram uma eternidade no serviço de terceira categoria, prestada por mais uma empresa estatal parada no tempo. Na saída, todos estão quietos, parecem apreensivos com aquele barulhão de tanta gente junta num só lugar, com malas e sacolas. Um jovem nordestino grita para o grupo que “a perua para levar vocês está lá fora”. Se Zé o abraça e lidera o grupo (seria ele um coiote?), e todos com um montão de pacotes, sacolas, embrulhos e malas se dirigirem ao estacionamento.
Ao ver tudo isso, lembro-me das sessões do Senado e da Câmara as quais assisti neste e em outras vezes que estive naquela ilha da fantasia, chamada Brasília. Vi durante um bom tempo parlamentares ficarem elogiando um ao outro, tecendo loas ao “desempenho fantástico de sua Excelência” neste ano de 2009, e desejando felicidades no ano novo. Muitos deles, conhecidos “inimigos” políticos que passam o ano todo fazendo discursos inflamados uns contra os outros frente às câmeras, criando CPI’s contra “aqueles corruptos”, mas morrendo de medo que alguém investigue o passado deles próprios. A maioria tem um forte sotaque nordestino, como o grupo do seu Zé, ali no avião. Porém, são “brasileiros de classe diferente”. Essas “excelências” vão para o nordeste de avião em classe executiva ou “de business”, vão “descansar da luta política” deste ano em residências luxuosas ou em Paris, como me disse um deles.
Mas que contraste... Enquanto aqueles “excelências”, ricos sangrando-se em saúde se elogiam e esquecem as mazelas, seu Zé e seu grupo (e a Zulmira, agora profusamente maquiada durante o voo – e quem sabe o futuro namorado), partem para o que parece ser sua primeira viagem de avião para São Paulo, com seus bairros pobres alagados. Passearam por Brasília, segundo uma das mulheres, vindo do nordeste até o Planalto de ônibus. Tinham que ver onde mora o “conterrâneo-ilustre-presidente”, que agora usa Armani, sapatos italianos, tenta “falar difícil” e viaja pelo mundo. É de uma nova casta. Esses retirantes modernos que antes só andavam de Itapemirim, agora são novos usuários de aeroportos, neste Brasil tão desigual e que demora a se encontrar. Quando isso vai mudar?
Espero que as avós cansadas encontrem a felicidade nestas festas de final de ano, e que os netos e filhos nesta Terra Paulista sejam cidadãos de bem, ajudando a construir uma cidade melhor, mais humana e que é “a maior cidade nordestina do Brasil”. Que todos possam desfrutar do bom da terra, seja de que origem for. 2010 tem mais!
Jose Clovis Lemes
O funcionário da empresa aérea chama e todos se apressam a correr para o portão de embarque. Ouvi um garoto gordo dizer: “Vamos seu Zé, vamos Dna. Maria!”. E foi aquele corre-corre. Seu Zé (típico nordestino da roça, chapéu de feltro surrado na cabeça), Dna Maria (ambos com aparência de estarem acima de 60 anos), Neguinha (assim ela foi chamada), Zuzú, o garoto gordo, seis (eu contei) outras senhoras idosas e quatro crianças de colo se ajuntam no portão de embarque. O funcionário pega alguns passes de embarque e aponta o ônibus. Depois ele vê essa senhora parada mais lá para trás, encolhida. É a dona Maria que se desgarrou do resto...
- Cartão de Embarque, por favor...
- Ahn? Que é isso?
- Aquele papel que lhe deram para a senhora entrar no avião.
- Sei lá. “Tinha” um papelzinho todo escrito, mas eu achei que não era nada (importante), amassei e joguei fora!
- Ah...Tá bão vá...A senhora tá com eles, né? (Apontando para o resto do grupo já no ônibus).
- É...Eu tô com o Zé...(e aponta).
- Mas o cartão...Ah...Tá bão, pode ir, vai!...
Ao chegar na aeronave, o funcionário vendo que “aquilo ali ia dar confusão”, pois todo mundo sentou onde queria, sem olhar se o assento era seu mesmo, grita: “Podem pegar o assento que quiserem. O assento é livre!” Já pensou conferir o número de assento cada um num vôo já atrasado?...
Eu protesto, pois estava morto de cansado e havia escolhido uma janela...Queria meu assento. E me deram, mas não dormi, pois tinha que pegar minha laptop e escrever o que via e ouvia. Na frente da Zulmira (sei o nome porque ela ligou para São Paulo para avisar os parentes que ela estava voltando a viver em Santo Amaro, na Zona Sul... Pela terceira vez depois de ter voltado para o Ceará)...Ela diz que tinha que desligar rápido porque “o avião pode até cair se a gente usa o celular dentro dele!” O solicito conterrâneo ao lado dela, de cabelos grisalhos e na casa dos 40 anos, ouve a conversa da moça e já emenda um papo, caprichando no português, perguntando se ela conhece uma determinada vila na zona sul...Ele conta que tem uma boa casa lá, tem um bom emprego, vive sozinho... Humm..., Isso tá cheirando a paquera. A moça vai em frente e começa a contar que é solteira e por aí vai, trocando números de telefone...
Ela até diz que gostou muito de Brasília, que passou em frente do Palácio do Lula, e emenda: “Até me imaginei mulher do Lula vivendo lá...” Opa! O “filho do Brasil” conquistando mais corações nordestinos...
O avião vai levantar voo e aeromoça faz aquela demonstração de segurança que quase ninguém presta atenção. Depois passa a conferir se todo mundo está com o cinto afivelado...Dna. Maria, na fileira ao lado não sabe o que fazer com aquele cinto...
- Senhora, por favor, a senhora tem que colocar o cinto nessa criança e na senhora também!
- Tá bom, eu coloco ele no meu colo e amarro bem com isso aqui...(E começa a puxar o cinto para amarrar)...
- Senhora, (já impaciente, pois o avião começa a se mover)...Não é assim. A senhora pode colocar ele no colo, mas não pode amarrar. É só enfiar essa coisa aí (apontando para a lingueta do cinto), na outra...Seu Zé, cabra macho mais experiente, já havia sacado o lance e fez como o passageiro do lado tinha feito, afivelando o cinto. Pela cara da aeromoça havia mais gente sem cinto da forma apropriada ali, mas...O avião precisava partir...Iria demorar explicar tudo novamente.
O piloto apaga as luzes para a decolagem. Zulmira comenta: “Ué... Porque apagou tudo?” O avião demora uma eternidade taxiando de uma pista para outra e a Zulmira comenta: “Se é para ir pelo chão, teria ido de ônibus! Voar dá um medo danado...” Dona Maria está quieta, segurando bem forte o neto contra o peito. O avião levanta voo e olho para ela. Está de olhos fechados...Deve estar na quarta ou quinta Ave-Maria...
Aí uma dúvida me assalta. Seriam aquelas senhoras idosas mães de “filhos do nordeste” que haviam migrado para São Paulo e agora estavam viajando pela primeira vez de avião para vê-los nas festas de fim-de-ano? Seria o seu Zé uma espécie de “coiote” nordestino, a semelhança daqueles facilitadores de imigrantes que invadem a terra rica e prometida dos EUA, passando por rios, cercas e desertos? Seriam elas avós que vão ver netos que, nascidos no sul-maravilha, agora fazem parte desta enorme babel em que se transformou São Paulo alagada pelas últimas chuvas?...
O tempo na chegada a São Paulo está...Bem, aquele tempo típico de São Paulo: nublado, chovendo, contrastando com o sol nordestino. A comissária diz que o piloto tem que apagar as luzes para o pouso. As luzes se apagam, e o avião é iluminado de vez em quando por relâmpagos naquela escuridão lá fora. Ah...Mas esse povo já aprendeu alguma coisa. Eles viram o Zuzú (o garoto gordo) se levantar e acender sua luz individual de leitura. É parecido no ônibus, né? Um por um, eles levantam a mão e fazem o mesmo. Até a Dna. Maria fica tentando todos os botões e acaba apertando o botão de chamar a aeromoça, que vem até ali, olha feio e desliga. Se vamos morrer que não seja no escuro!
O voo toca a pista e tem gente que já se levanta, até com criança no colo...A aeromoça se apressa a falar alto para que ninguém se levante, e espere “o avião parar completamente e apagar aquela luzinha do cinto de segurança...” Quando a luz do cinto se apaga, todos se precipitam porta afora, em direção ao ônibus que nos levará ao terminal no meio da chuva. Ouço ameaças de uma mãe para uma criança que chora, talvez por causa do desconforto nos ouvidos, causado pela descompressão: “Cala a boca, Heloisa, senão te enfio a mão aqui mesmo! Você fica me fazendo passar vergonha! E não vou dar a chupeta, não! A vóinha já falou que entorta os dentes!”
As malas demoram uma eternidade no serviço de terceira categoria, prestada por mais uma empresa estatal parada no tempo. Na saída, todos estão quietos, parecem apreensivos com aquele barulhão de tanta gente junta num só lugar, com malas e sacolas. Um jovem nordestino grita para o grupo que “a perua para levar vocês está lá fora”. Se Zé o abraça e lidera o grupo (seria ele um coiote?), e todos com um montão de pacotes, sacolas, embrulhos e malas se dirigirem ao estacionamento.
Ao ver tudo isso, lembro-me das sessões do Senado e da Câmara as quais assisti neste e em outras vezes que estive naquela ilha da fantasia, chamada Brasília. Vi durante um bom tempo parlamentares ficarem elogiando um ao outro, tecendo loas ao “desempenho fantástico de sua Excelência” neste ano de 2009, e desejando felicidades no ano novo. Muitos deles, conhecidos “inimigos” políticos que passam o ano todo fazendo discursos inflamados uns contra os outros frente às câmeras, criando CPI’s contra “aqueles corruptos”, mas morrendo de medo que alguém investigue o passado deles próprios. A maioria tem um forte sotaque nordestino, como o grupo do seu Zé, ali no avião. Porém, são “brasileiros de classe diferente”. Essas “excelências” vão para o nordeste de avião em classe executiva ou “de business”, vão “descansar da luta política” deste ano em residências luxuosas ou em Paris, como me disse um deles.
Mas que contraste... Enquanto aqueles “excelências”, ricos sangrando-se em saúde se elogiam e esquecem as mazelas, seu Zé e seu grupo (e a Zulmira, agora profusamente maquiada durante o voo – e quem sabe o futuro namorado), partem para o que parece ser sua primeira viagem de avião para São Paulo, com seus bairros pobres alagados. Passearam por Brasília, segundo uma das mulheres, vindo do nordeste até o Planalto de ônibus. Tinham que ver onde mora o “conterrâneo-ilustre-presidente”, que agora usa Armani, sapatos italianos, tenta “falar difícil” e viaja pelo mundo. É de uma nova casta. Esses retirantes modernos que antes só andavam de Itapemirim, agora são novos usuários de aeroportos, neste Brasil tão desigual e que demora a se encontrar. Quando isso vai mudar?
Espero que as avós cansadas encontrem a felicidade nestas festas de final de ano, e que os netos e filhos nesta Terra Paulista sejam cidadãos de bem, ajudando a construir uma cidade melhor, mais humana e que é “a maior cidade nordestina do Brasil”. Que todos possam desfrutar do bom da terra, seja de que origem for. 2010 tem mais!
Jose Clovis Lemes
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